terça-feira, outubro 12, 2004

Querido avô,

01:59


Ainda faz pouco tempo que foste embora e talvez por isso ainda não acredite que partiste!
Andando pela tua casa ao longo do fim-de-semana parece que ouço a tua voz, a tua tosse da bronquite e as tuas cantigas trouteadas pela metade. Quando subo as escadas e olho para a porta do teu quarto, sinto por breves momentos que posso entrar e que ainda lá estás... mas é tudo enganos da vontade.
Provocado pela nossa convivência sazonal, só agora percebi o quanto fazias parte da minha vida e de como apesar da distância eras uma presença nas minhas conversas e pensamentos.
Nunca te consegui explicar que a minha licenciatura servia para muito mais além de dar aulas e nem nunca percebeste que podia haver um longo caminho depois da minha "festa de formatura", e por isso a ideia de estar a continuar a estudar tinha de ser explicada com um simples "Quero ser mais!". Para ti as pessoas que estudavam dividiam-se em quatro tipos: os médicos, os engenheiros, os advogados e os professores... Felizmente para ti conseguiste incluir-me nesta última das categorias de honra, apesar da minha irritação! Ainda hoje consigo lembrar a tua alegria e o brilho dos teus olhos depois da "festa de formatura" (como tu lhe chamavas) na Cidade Universitária... Ou como me disseste nesse dia com ar orgulhoso enquanto olhavas os edifícios: "Então é aqui que estudas!".
Só agora percebo, que apesar do nosso afastamento desde que cresci, tinhamos um pelo outro um daqueles estranhos sentimentos de estima, afeição e carinho que apesar de nunca serem pronunciados estão sempre lá, fortes, verdadeiros e infindáveis. Tinhas a tua maneira muito própria de mostrar carinho pelas pessoas mais próximas e essa forma tão própria nem sempre foi compreendida. Lá devias ter as tuas razões! Quem sou eu para as pôr em causa. Alguém que teve uma vida como a tua deve ter razões para ser como é!
Sempre tivemos perto de 500 Km a separar-nos, mas os laços de infância sobreviveram a isso. Nunca esquecerei das longas férias de verão passadas na Vila, das histórias e das lendas, das canções e versões agrícolas e do teu gosto pela música.
Cresci a ouvir de todos, as histórias de como eras uma criança muito responsável, honesta e atinada.
Ouvi de várias pessoas e com atenção a história de como andavas descalço para não gastares os sapatos, de como poupavas dinheiro das gorjetas para comprares uma prenda à tua mãe e de como punhas as calças debaixo do colchão para não ficarem enrugadas.
Habituei-me a imaginar-te nas diversas profissões que tiveste e delas ouvia todos falarem de como eras bom e profissional. Compreendi como conhecias todos os atalhos de quando eras carteiro, como sabias todas as rezas, mezinhas e contagens pelas luas para as plantações de seres agricultor, como perdeste meio dedo quando estavas na pedreira e de como sabias ler partituras quando fizeste parte da Banda de Música da Vila.
Ainda hoje recordo as histórias de quando estiveste na tropa em Lisboa; as descrições das ruas, dos carros, do mar e das pessoas. Uma Lisboa tão diferente daquela em que eu cresci e vivi... Das tuas descrições nada conseguia ver para além dos prédios e de alguns pontos de referência. Era divertido ver como eu que sempre vivera em Lisboa, não conhecia metade do que tinhas visto.
Recordo com especial carinho as nossas idas à praia. Tinha eu 3 ou 4 anos e estava cheio de medo da água a conversar contigo sobre como o mar era bom e as ondas sabiam bem. Lembro-me de te ver ir em direcção às ondas... depois perdia-te de vista e quando conseguia ver-te de novo já estavas todo molhado. Dizias com um ar satisfeito: "Que belos mergulhos!" Anos depois apercebi-me que nunca chegavas a mergulhar e que apenas molhavas os pés até aos joelhos e depois com as mãos molhavas-te como se tivesses dado grandes mergulhos.
Hoje recordo com o auxílio das fotos os nossos passeios às tuas cavalitas e as nossas corridas para ver o comboio passar. Procuro trazer da memória as músicas que fazias com os dedos na mesa e com a mão na axila. Lembro-me o prato antigo que partimos na sala lá de casa enquanto jogavas à bola comigo; apesar do teu esforço a mãe descobriu logo tudo e ainda tiveste de ouvir a minha mãe ralhar-nos.
Lembro-me que foi contigo que descobri as maravilhas e as curiosidades da leitura tranquila e divertida dos Almanaques "O Borda d'Água" e d' "O Seringador". Ainda hoje quando vejo um destes dois não consigo deixar de os desfolhar ou até mesmo comprar. Eu nunca serei um agricultor avô! E tu sabes disso! Mas a leitura destes livrinhos tem muito mais para além dos conselhos agrícolas. Não é?!
Na última vez que as pessoas te virão reparei como apesar de seres uma pessoa modesta eras uma figura respeitada na Vila. Ao teu último adeus estava muita gente... Muitas mais que a capacidade da Igreja, houve quem repara-se, quem sabe mais do dia-a-dia da Vila que eu, que lá estavam todas as pessoas que interessavam - os chamados "cães grandes". Mas não foram presenças de conveniência, pelas palavras que tiveram e pela permanência ao longo da tarde, notou-se serem sentimentos verdadeiros. Mas uma vez pude escutar todos recordarem as tuas histórias de infância, a tua honestidade, a tua responsabilidade, o teu profissionalismo e a tua rectidão. Nestes últimos dias recordei as tuas frases mais comuns: "Antes Puta que ladra! Porque Puta é com aquilo que é meu (e com isso faço o que quiser) do que ladra que é com as coisas dos outros" e "Ter carro é empobrecer alegremente". Não consigo deixar de pensar em como tens tanto razão!
Sabia que nunca poderia falar-te de várias assuntos; (nunca poderia falar-te da minha homossexualidade!) Mas sei que terias sempre aquele ar calmo e tranquilo e enquanto passavas as mãos pelo meu rosto e sorrias dirias: "Oh meu filho! Eu disso não percebo nada, mas sei que farás o melhor que souberes!".
Ontem, enquanto arrumava a tua gaveta da cozinha encontrei o teu espelho pequeno, a tua faca da merenda e o famoso "Seringador". Recordei a primeira vez que me lembro de abrir essa gaveta, a avó disse: "Não mexas na gaveta do avô!" e "Deixa o livro do avô... Podes ver mas não risques nem rasgues as folhas!"

Foste a pessoa mais próxima que tive de ver partir e talvez por isso seja este um sentimento novo para mim. Mas de facto a sensação de perda física de alguém é um sentir com que ainda estou a aprender a conviver e sempre que estou mais distraído ainda és uma presença na minha vida. Tenho a certeza que na próxima lista de presentes de Natal que fizer ainda vais lá estar.
Farás sempre parte das listas dos meus pensamentos até que perceba que já aqui não estás e que por cá ficou apenas uma imensa lembrança.

Um beijo do teu neto

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